não faça
eu gosto de ler desde bem pequena. desde antes de me ensinarem. eu gostava tanto que fui descobrindo sozinha como fazer e quando na escola começaram a ensinar eu já sabia.
primeiro que eu tinha sede de ir pra escola. eu via minha irmã indo e chorava querendo ir também. quando finalmente chegou a minha vez eu estava muito pronta. muito animada. crianças às vezes choram e pedem pela mãe quando começam a ir pra escola. minha mãe conta que ficavam todas as mães ali, no corredor da escolinha, escondidas para quando seus filhos clamassem por elas, tinha um período de adaptação. ela tinha passado por isso com a minha irmã. comigo não. ela dizia que ficou até sem graça. que preferia que eu tivesse precisado um pouquinho que fosse dela. mas eu não precisei. de primeira eu já entrei na salinha de aula e me senti em casa. se tem uma coisa que me agrada é aprender. meu hobby favorito até hoje.
e quem lê muito eventualmente acaba começando a escrever. eu criava na minha mente as imagens das histórias que eu lia e uma hora minha mente criava histórias que eu não tinha lido. essas eu podia escrever.
"Ele percebeu seus olhos marejados e perguntou:
-- Você está criando histórias?
-- Você sabe que sim. Você sabe que eu não consigo evitar. Cada silêncio seu eu preencho. Às vezes com coisas terríveis. Eu invento as piores coisas sobre você.
-- Não inventa histórias. Você sabe como eu me sinto em relação a você.
-- Eu não sei. Essa parte eu também invento. A maior parte de você fui eu que inventei. Eu invento histórias sem parar. O tempo inteiro. É o que eu faço. Sempre fiz. Podia ser algo bom. Eu podia ter feito algo produtivo com isso. Você me pedir pra não inventar histórias é praticamente me pedir pra que eu deixe de existir.
-- Só não invente as que te machuquem. Vem aqui.
Ele abriu os braços e ela saltou em direção àquele abraço. Ainda com lágrimas nas bochechas eles se beijaram. Ela fez carinho na sua barba secando as lágrimas que tinham sido transferidas pro rosto dele.
-- Vai ficar tudo bem.
Ele disse. Ela repetiu com o ouvido no seu peito ouvindo seus batimentos:
-- Vai ficar tudo bem."
todo o dinheiro que meus pais me davam para as necessidades que eu pudesse ter fora de casa eu juntava pra comprar livros (e bichos de pelúcia). lanche? eu aguento esperar pra comer em casa. ônibus? eu posso ir caminhando. qualquer necessidade era menor que a necessidade de ler.
minha paixão era uma loja chamada Agência Status. numa avenida movimentada, na frente de um ponto de ônibus. era só um grande corredor com livros, revistas e jornais. anos depois ampliaram, abriram uma cafeteria, mas quando eu vivia lá era só um corredor. eu ia todo dia e namorava os livros que um dia eu ia comprar. alguns eram muito caros, mas um ou outro dava. e tinha um mostruário de livros de bolso. foi assim que eu comecei a ler Bukowski.
eu não acho que Bukowski era uma leitura adequada pra uma adolescente. eu também não acho que Bukowski seria uma leitura adequada nos dias de hoje. muito machista, muito alcoólatra. mas na época eu gostava. teve até um período em que até quem nunca tinha lido fingia ler e gostar. dava ares de intelectual. eu lembro disso porque às vezes as pessoas usavam expressões dos contos dele e eu empolgava falando dos temas e personagens até a pessoa envergonhada me revelar que não tinha realmente lido. acontecia frequentemente quando homens queriam me elogiar e me chamar de "a mulher mais linda da cidade". eu me identificava com a Cass e às vezes queria atravessar um grampo de chapéu no meu rosto. quando a conversa tomava essa direção os falsos leitores se chocavam. mas eu gostava de Bukowski.
hoje eu me lembrei de um poema dele. estava brincando de inventar histórias e um amigo começou a usar as idéias para fazer prompts pra inteligência artificial escrever. a ironia era que o universo que estava criando era um no qual as máquinas dominavam o planeta e só poupavam os humanos que criavam arte. porque arte é algo que por mais que elas consigam copiar, elas não conseguem criar. e aí começamos a conversar sobre isso. e ele argumentou que o que a inteligência artificial escrevia com o prompt dele era dele (e não dos donos dos códigos). mas pra mim não tinha nada a ver com isso. e eu me lembrei do poema.
não tem lógica pedir pra uma ferramenta escrever pra mim, porque eu não crio as histórias pra poder ter uma história. eu crio porque elas explodem pra fora de mim. eu crio porque se eu não criar eu morro. elas ficam fervendo dentro de mim e às vezes transbordam pelos meus dedos.
na minha vida aconteceram algumas coisas que me levaram a esconder as histórias lá dentro. a não escrever. a não pintar. a não me expressar livremente. a não deixá-las sair de nenhuma maneira. e eu fui me desfazendo, me tornando um nada, fiquei esperando a morte chegar.
aí eu encontrei o piano. e com o piano as coisas voltaram a se movimentar dentro de mim. meus dedos voltaram a fluir arte pra fora das minhas entranhas. ainda é um exercício, doloroso, deixar sair. são sempre pequenos partos. também é doloroso deixá-las dentro. eu me machuco. eu adoeço.
e finalmente o poema fez sentido.
então você quer ser escritor? – charles bukowski
se não irrompe de dentro de você apesar de tudo, não faça. a menos que venha sem pedir do seu coração e da sua mente e da sua boca e das suas entranhas, não faça. se você tem que se sentar por horas encarando a tela do computador ou debruçado em sua máquina de escrever procurando palavras, não faça. se você estiver fazendo isso por dinheiro ou fama, não faça. se estiver fazendo isso porque quer mulheres em sua cama, não faça. se você tem que sentar lá e reescrever de novo e de novo, não faça. se é cansativo apenas pensar em fazer isso, não faça. se estiver tentando escrever como outra pessoa, esqueça.
se você tem que esperar isso rugir de dentro de você, então espere pacientemente. se isso nunca rugir de dentro de você, faça alguma outra coisa.
se você primeiro tem que lê-lo para sua esposa ou sua namorada ou seu namorado ou seus pais ou para ninguém, você não está preparado.
não seja como tantos escritores, não seja como tantos milhares de pessoas que se consideram escritoras, não seja lento e entediante e pretencioso, não se consuma com amor- -próprio. as livrarias do mundo têm bocejado até dormir sobre seu tipo. não faça parte disso. não faça. a menos que isso venha de dentro da sua alma como um foguete a menos que manter isso te leve a loucura ou suicídio ou assassinato, não faça. a menos que o sol dentro de você esteja queimando suas entranhas, não faça.
quando for a hora, e se você tiver sido escolhido, isso será feito sozinho e isso continuará se fazendo a menos que você morra ou isso morra em você.
não há outra maneira.
nem nunca houve.
so you want to be a writer?
if it doesn’t come bursting out of you in spite of everything, don’t do it. unless it comes unasked out of your heart and your mind and your mouth and your gut, don’t do it. if you have to sit for hours staring at your computer screen or hunched over your typewriter searching for words, don’t do it. if you’re doing it for money or fame, don’t do it. if you’re doing it because you want women in your bed, don’t do it. if you have to sit there and rewrite it again and again, don’t do it. if it’s hard work just thinking about doing it, don’t do it. if you’re trying to write like somebody else, forget about it. if you have to wait for it to roar out of you, then wait patiently. if it never does roar out of you, do something else.
if you first have to read it to your wife or your girlfriend or your boyfriend or your parents or to anybody at all, you’re not ready.
don’t be like so many writers, don’t be like so many thousands of people who call themselves writers, don’t be dull and boring and pretentious, don’t be consumed with self- love. the libraries of the world have yawned themselves to sleep over your kind. don’t add to that. don’t do it. unless it comes out of your soul like a rocket, unless being still would drive you to madness or suicide or murder, don’t do it. unless the sun inside you is burning your gut, don’t do it.
when it is truly time, and if you have been chosen, it will do it by itself and it will keep on doing it until you die or it dies in you.
there is no other way.
and there never was.
Versão para o português: Iana Cordeiro.